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domingo, 20 de setembro de 2009

Demônio Familiar




Meu pai sempre criticou a vizinhança. Dizia pra minha mãe não se enturmar, ficar quieta. Eu não concordava com aquilo, via ser um empecilho para a construção de novas amizades, de segurança no bairro, auxílio. Hoje percebo uma diferença na minha opinião.

Dia desses a vizinha foi convidada para um almoço. Sobre a mesa: pão e vinho.
"Em nome de Jesus, tá é abençoada mulher." - disse ela a minha mãe.
"E essa menina linda, ô glória Senhor!" - disse ela a minha irmã.
E eu na ponta da mesa, calado, observando, esperando.

[...]

"Em nome de Jesus, os problemas vão ser resolvidos." - e me olhou.
"Tá é amarrado todo o mal envolvido aqui nessa casa, Senhor!" - e me olhou.
Vi corpo e sangue derramados sobre a mesa, vi ostentação da Consagrada.
Um ritual de exorcismo, com cabeças tortas, cama tremendo e com direito a 'fuck me' em voz rouca.
Saiu do jantar de barriga cheia.

Dia desses o filho de alguém apareceu, minha irmã convidou para entrar.
"Não! Disseram que aí tem o demônio".

Hoje eu sei que preciso dar meu beijo no rosto da vizinha, para que ela conclua a Via Sacra.


Jesuíta Barbosa

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

O Estranho

Existem três fatores indispensáveis para um rebanho: o chocalho, que está ali sempre presente, batendo ao ouvido do dono, marcando território; a servidão, responsável pelo consumo e satisfação; e a marca à ferro quente, definindo propriedade. Em prática esses fatores se adéquam ao sertão ou algo mais fora de linha, mas que ainda existe. Trago aqui na verdade uma referência ao armazenamento em massa, às fantásticas fábricas de carne, laticínios e derivados Ltda.
E você deve estar se perguntando que merda de assunto é esse, não? Pois bem eu digo: uma história. Digamos “A ovelha desgarrada”, seria um título interessante e usual, não! Não posso deixar que essa história caia na utilidade e nem vai cair, porque eu lhes digo rapaz: as pessoas não veem o que está prático, e a praticidade a que me refiro é feia aos olhos do mundo, é podre e desconhecida. Mas enfim, não sei se está interessado em ouvir essa história absurda. Tudo bem, mas não peça pra que eu pare, não posso guardar parte dela pra mim.
Tudo corria muito bem obrigado antes daquele acontecido. O planejamento de criação, os métodos de alimentação e sua ração diária e calculada, o processo de ordenhamento maquinal afinal tudo se industrializa, a segurança do gado. Tudo é pensado naquele lugar, planejado, detalhado em horários, anotado em pranchetas, atas diárias, tudo branco, limpo, seco. E vermelho, da cor da carne crua virando dinheiro. E é essa a recompensa: salário mensal descontado de taxas urbanas e sindicais: vida pacata e crua como a carne. É assim que vivem os operários de uma indústria de bovinos. Assim vivia eu, mas com um mero destaque. Eu sabia do que acontecia por trás da burocracia, sabia do brilho que cintilava o olho do animal antes do abate. Ofuscante, somente a mim, mas não ache que isso foi um privilégio. Sou eu que carrego na espinha o grito calado do animal, grito consentido, entregue. Eu não sentia pena ou qualquer sentimento de consolo, mas aquilo me incomodava mais que qualquer coisa.
Todos usam branco naquele lugar, uma espécie de limpeza melancólica, apática. Os bois? Esses são divididos em quatro grupos: há ali o grupo dos mansos, que quase não se movem sem ordem, sem empurrão, uns grandes tolos sem culpa, quietos, amedrontados por tudo o que há fora daqueles limites; há também o setor dos ativos, garanhões, procriadores, fortes robustos, sem qualquer outra função a não ser fazer o que lhe induzem. Ali quase não há presença de fêmeas, não! As fêmeas devem ser dóceis, gentis, compassadas e quietas, uma fêmea em si, como se deve; o grupo das leiteiras, amamentadoras, criadoras e fortificadoras de mais futuros enlatados S.A.; e por ultimo e tão quanto desmerecido, o setor dos desgarrados, onde se classificam aqueles que são impulsivos, inquietos, com alguma projeção de futuro sanguíneo, ou aquele que nasce com alguma doença, ou com algo estranho, difícil de ser identificado, ou as aberrações. Desse grupo destacou-se ele.
Ele não era brabo, impulsivo, nem tinha nenhuma projeção de futuro sanguíneo identificável, nem qualquer aberração visível, mas havia algo estranho nele, e todos o olhavam assim com os olhos de quem sabe demais, mas não sabe nada, anotando qualquer coisa em suas pranchetas brancas com caneta vermelha. Eu sabia, sabia pouco, mas sabia. Ele trazia consigo o sinal, e esse radiava em meus olhos. Eu já previa algum ato imprevisível, ou algo que o fizesse mais estranho ainda, e ainda mais lindo, mas não imaginava que seria daquela forma. Não sei se você sabe, não! Você não sabe, mas alguns outros do rebanho também trazem esse sinal. Muitos passam a vida inteira sem notá-lo, alguns o notam, mas fingem ignorá-lo, outros o percebem tarde demais, outros nunca. Ele o percebeu cedo, e foi cedo que ele planejou tudo.
Sim meu rapaz, um animal fazendo planos, porque não? Eu não entendo essa maniazinha que a gente tem de se auto-desclassificar do mundo animal, acho que por isso inventaram a metáfora: a realidade encoberta que não deixa de ser real. Racional? Somos racionais? Talvez haja uma inversão de definições. Eles, talvez. Preciso desconsiderar seu comentário, desculpe.
Voltando: então, alguns dias depois aconteceu. Ouviu-se a sirene e tudo que era branco se espantou. Um deles, de alguma forma havia burlado o sistema de segurança e fugiu naquele instante. Um alvoroço se deu no lugar, a empresa corria risco de multa. Todos foram para fora, e juntos viram ao longe: ele daquela forma. De dentro, o resto do rebanho via aquilo com a baba escoando, loucos de vontade, mas sem nenhum diálogo nem consigo mesmo, como sempre amém. Iluminado e envolto por uma incandescência extrema, ele estava levitando no ar. Percebi que ele sentia a máxima de liberdade, descobrindo o que havia fora dos limites e longe daqueles. Os internos, que continuavam divididos, quietos, com a baba escoando, faziam crescer angústia: um dos bois cuspiu no chão, outro vomitou. Os de branco olhavam para cima sem nenhuma expressão, relatando aquilo nas pranchetas. Minha prancheta estava em branco, sem nada escrito, como sempre esteve.
Enfim, ele levitou até sumir no céu. Eu sabia que ele iria encontrar mais alguns iguais a ele por ai, pelo ar, no desconhecido.




03/08/09

Jesuíta Barbosa

quarta-feira, 29 de julho de 2009

Surabaya




Hoje anoitece devagar demais. Venta demais. Uma sensação de fome, que não é, me consome. Um anoitecer incômodo, ao som de Surabaya Johnny, cantado nacionalmente por alguém interessado em Brecht. Vi uma passagem de "O Beijo no Asfalto" num livro e senti vontade de já ter lido. Sinto vontade de tantas letras, tantas páginas, oráculos, horóscopos, autores, magazzines, palavras-cruzadas. Só sinto vontade. Simples.
Hoje anoitece, e eu vejo o vazio que remete a discussões paranóicas como a de uma noite passada, que falava sobre metas, desejos, anseios, ingressão em faculdade, escolhas. É uma cobrança intermediária [ào] desleixo. Daí tudo acaba nesse texto sem idealização. Confuso - como o autor.
"O Beijo no Asfalto" ali do lado e eu parado numa cadeira de balanço frente a uma janela branca, projetando um muro de tijolos brancos. Aprecio a vista. "O Beijo no Asfalto" ali do lado, e Brecht fuma um cigarro vencido.
- senta aqui rapaz. - ele diz.

domingo, 12 de julho de 2009

Parabólica


O vento passava por seus cabelos como um carinho intenso e interminável. O vento era tudo o que ela precisava para um consolo imediato, um beijo de adeus, um abraço. Sabia ela que era o vento um movedor de nuvens, um gerador de forças, um agente de erosão. Mas não, ali o vento era impressindívelmente um carinho sincero.
Vestia um longo amarelo, de tafetá e detalhado em rendas. O decote formava um v, e dava enfase ao seios roliços. Junto ao vento, o vestido fazia movimentos num vai e vem detalhadamente bonito. O carinho ia para a direita, então iam junto o cabelo, o vestido, e esvaia-se os pensamentos. O turbilhão de emoções que passara por ela alguns minutos antes, ali já não estava mais.
Seus olhos viam as luzes da cidade lá de cima, do alto de um prédio em construção. As luzes dos carros, dos apartamentos, dos postes eram embaçadas, como uma pasta em movimento.
Estava ali descalça de saltos, de sorte, de medo.
E num movimento curto e decisivo, ela pulou. E sorriu.

Jesuíta Barbosa

sábado, 27 de junho de 2009

+ 25 - 06 - 09


"MJ" estava escrito numa blusa - tecido de má qualidade;
no rosto da mulher havia certa angústia constipada.
E envolta do som frenético de Billie Jean, tocado por um camelô de CD'S, ela caminhava as ruas lotadas e sujas do centro da cidade, numa tarde quente de junho, um horário pico.
Passava frente a uma banca de revistas, com os letreiros dos jornais escancarados: "Morre Michael Jackson".
Olhou, comprou e continuou a caminhar com passos compassados, observando tudo.
A blusa e o "MJ" escrito nela, davam enfase à lembrança do pop astro.
Dia 25, morreu também a atriz Farrah Fawcet.
Dia seguinte, estava lá: "FF".

domingo, 21 de junho de 2009

O Amor


Por várias vezes olhei e vi a verdade. Ali estava contida uma doce vontade de chegar, estar, continuar. Um local referência para a emoção, a expressão e, de novo, a verdade. Havia verdade no olho daquele ser. Um olho de cor amarela, mas não de amarelo queimado, assado ou frito. Era amarelo daquele amarelo que é amarelo mesmo, assim, amarelo.
Vivos: o olho e a cor.
Vivo também estava o sentido cardeal norte daquele ser, apontando para um bebê em fase de crescimento. Engatinhava uma velocidade desfavorável à do olho, pois ia devagar a criança, em direção àquela pupila dilatada [estava escuro ali].
O infanto, apesar de pequeno, sabia que era o olho a sua meta. O instinto o fazia aproximar-se do amarelo. - talvez fosse a cor a causa do vislumbramento. E o olho era sim, vislubrante.
Mal sabia o neném que era a cor, o perigo.


Jesuíta Barbosa

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Monnique Frazão


Pensava na vida, e na continuação. Pensava na música que viria, e pensava no salto.
Ele estava sentado no banco duro, pensando, com a mochila lotada.
A mochila trazia as revelações do dia, a sua rotina, o seu futuro diário, e o passado também.
Trazia a beleza e a sujeira dos dias de sol, vento, flores, e chuva, esse último andava se repetindo.
O banco duro era de um ônibus. Haviam duas senhoras que o olhavam sem parar, nitidamente. Ele achou que fosse por causa das roupas.
Chegou, enfim, à parada: o monumento quase centenário. Um lugar que parecia ter uma fita de isolamento, barrando o público. A fita, na verdade, cobria os olhos do povo.
Entrou, sentou, descançou. O ambiente lhe agradava extremamente, e a alegria pulsava nos olhos, no cabelo, nas unhas, na boca. Ele tinha dúvidas, mas sabia que o que iria fazer era, de certo modo, profissional, apesar de não parecer assim para a maioria. Sem dúvidas, um divertimento também. Em suma: um trabalho prazeroso.
Pensou na beleza, na estética, no trabalho e na desconsideração deste. Pensou, de novo, na vida e na continuação.
Sentou numa cadeira, frente a si mesmo. Gostava das luzes que arrodeavam o espelho.
E então lembrou do vestido, dos cilhos, do salto, da peruca.
Virou uma francesa de meia boca. Linda e glamurosa, gostosa, fina.
Perdeu o concurso para a Maria Ryta.
Depois guardou tudo dentro da mochila, de novo.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Grande Circular


Deus é tudo na vida das pessoas. Quem diz que não é, tá errado. Ele é sim, e abençoa a gente sempre. Eu digo porque sou estudado. E ainda tem alguns que falam por ai que foi evolução. Evolução é uma bosta. Porque eu digo: tem a evolução, e tem a divindade... Dinvindade não, como é... Criação. Evolução e criação.
É assim: você nasce, ai você tem duas escolhas, a evolução ou a criação. Ai você escolhe e pronto, vá pro lado que você quiser. Mas eu digo uma coisa: tem nada de chimpanzé não, nem de macaco nenhum. Teve a arca, e só viveu quem tava na arca. Aí pronto. Foi só água e pronto.
E ainda tem a história da pedra que caiu em cima dos dinossauros, que a ciência fala tanto. Como é que caiu uma pedra se o mundo ainda é redondo? Redondo igual uma laranja? Porque é redondo, eu sei porque eu sou estudado. E você vê que uma vez eu perguntei para a minha grande professora de ciências: " tem certeza que o mundo é vindo dos macaco?" E ela me respondeu: " não sei, só falo o que me mandaram dizer".

Anônimo (do trajeto Dragão do Mar - Terminal Ant. Bezerra).

domingo, 17 de maio de 2009

Vegetal Natural

Era explendorosa perante as outras flores daquele jardim, embora estivesse escondida. Uma espécie rara, talvez nunca antes avistada por ninguém, se encontrava presente em frente a um prédio muito alto, na zona sul de uma grande cidade.
De caule curto, pétalas alongadas e cor verde (nos seus mais variados tons), o ser vivo se mostrava excêntrico e meigo, e era essa contradição que o deixava mais belo. Tinha o aroma desconhecido que sempre sonhamos em sentir, aquele aroma inconfundível que nunca experimentamos - aquele mesmo. Era orvalhada, a flor. Não era, esse orvalho, proveniente do tempo, ou da chuva. Ele brotava do interior dela, do lado de dentro do fundo, de onde talvez também viesse o aroma.
E, escondido, o vegetal crescia muito devagar, se fazendo cada vez mais bonito - e talvez por estar escondido do olho de qualquer ser vivo é que se fazia mais bonito ainda. Uma beleza sincera, então. Uma beleza parecida com aquelas que nós, seres humanos, vemos só de vez em quando, caminhando numa rua curta de janelas com flores, ou vendo o sorriso de um bebê, ou batendo a massa de um bolo, ou.
A flor! Crescia encantada, naquele terreno de jardim, fabricado para a frente de um prédio muito alto, na zona sul de uma grande cidade. Ela, em sua maravilha natural, projetava para o mundo tudo aquilo que uma planta precisa para se enquadrar num ecossistema. Cor verde, aroma inconfundível, orvalho brotado de seu interior, atração. Sendo assim, veio então um menino vestindo uma camisa verde e avistou a flor. Deslumbramento espontâneo.
O ser arrancou a flor pela raiz, e a plantou novamente, no seu umbigo.

Jesuíta Barbosa